sábado, 1 de março de 2014

A TV e a (de)formação do povo (2/3)

Televisão: A Alma em Risco
Por Isabelle Doré e traduzido por Andrea Patrícia

          

Televisão e Verdade

Na hipótese de que as pessoas assistem a programação da televisão para se manter informadas, será que a televisão nos dá acesso à verdade? Nós todos podemos lembrar das mentiras diretas que foram transmitidas pela mídia. Mas há também uma forma mais sutil de mentir: a mentira indireta.

Mentiras Diretas

Será que existem redes de televisão independentes, sejam públicas ou privadas? Mesmo os canais de televisão que recebem apoio dos espectadores parecem ter uma posição "religiosamente correta" muito perceptível.

Falsidade ou desinformação existe em toda parte, em todos os domínios: noticiários, documentários, ficção, e na categoria híbrida chamada "Docufiction" (1). Segundo o dicionário, docufiction é um filme de televisão dramatizado que reconstrói os eventos reais misturados com elementos fictícios, cenas desempenhadas por atores, ou documentos autênticos. De fato, em um docufiction, tudo pode ser inventado. Não pode haver fatos reais; o prefixo mentiroso "docu" serve apenas para enganar o espectador sobre a mercadoria.

Desinformação: um exemplo clássico é a produção de Timisoara (sobre a revolta Romena contra o regime comunista em 1989), que foi reconhecida como tal pela gerência da estação de televisão.

Outra maneira de mentir consiste, por exemplo, em denegrir católicos fiéis à Tradição chamando-os de "Lefebvristas" ou na designação de imigrantes ilegais sob o falacioso rótulo "trabalhadores sem documentos".

Mentiras podem ser misturadas com obras de ficção: é muito fácil em um filme atribuir o papel de um bandido a um católico, um militar, ou um pai de uma grande família.

Docufiction consiste na mistura de documentário (a forma) e ficção (a história), o que equivale a apresentar ficção sob a aparência de documentário sério.

Space Odyssey, uma série de televisão sobre pré-história evolutiva, pertence ao gênero de docufiction. Mas como muitos telespectadores poderiam ser capazes de compreender que na realidade isso envolvia pura ficção científica e não reconstituição histórica? Os espectadores que já estavam informados sobre a questão da evolução julgaram severamente: É estúpido, capenga e idiota, eles realmente acham que as pessoas são idiotas! Outros espectadores, professores, católicos comprometidos, foram seduzidos por este falso-documentário.

Por último, se se trata de documentário, notícias, ficção, ou docufiction, é muito difícil saber se o que está sendo dito é verdade ou não. Livros ruins também transmitem mentiras, mas "o relacionamento com um livro é mais racional do que a relação com as imagens". No princípio, A Origem das Espécies de Darwin só seduziu os ambiciosos; os homens da ciência e os Cristãos perceberam as fragilidades da argumentação de Darwin. O ensino obrigatório da doutrina de Darwin nas escolas e a ausência de uma reação da Igreja a essa mentira fizeram com que esta se afundasse nas mentes das pessoas. Com um filme ou docufiction, mentiras são espalhadas mais facilmente. Além disso, como veremos mais adiante, um livro não é concebido ou percebido como um filme ou noticiário.

Mentiras indiretas

Na hipótese de que uma transmissão havia sido concebida sem quaisquer segundas intenções políticas ou ideológicas, pode-se supor que as mentiras não ocorreriam. A televisão e o cinema não podem transmitir mentiras ininterruptamente. Com exceção de mentiras flagrantes, o resto deve ser um reflexo exato da realidade. Mas as coisas não são tão simples. Há o que pode ser chamado de "efeito modelo": a realidade não é mostrada, mas sim um modelo da realidade, uma aparência da realidade. Estamos acostumados a ver o mundo não como ele é, mas através do prisma dos meios de comunicação, independentemente da boa vontade da equipe do filme.

A presença da mídia está entre nós e o mundo de diversas maneiras. O que é interessante é o espetacular: adicione as restrições de encenação e seleção humana, mais ou menos inocente, mais ou menos racional, e você vai entender que a imagem que vemos não pode ser a realidade nua e crua.

Usarei uma experiência pessoal para ilustrar o "efeito modelo" em quatro etapas: uma equipe de TV veio a nossa casa para fazer uma reportagem sobre homeschooling (2).

Em Casa

Nós mesmos tínhamos pensado sobre o cenário: o que vamos mostrar? O que vamos esconder? Para nossa família, as apostas eram altas porque tivemos um problema real com o governo. Um médico, um acérrimo defensor da medicina alopática e presidente do comitê de liderança da paróquia local, estava questionando a nossa preferência pela homeopatia, pelo homeschooling, e, sem dúvida, pela Tradição. Separamos o que poderíamos dizer e o que deveria se deixar de dizer. Nós decidimos não trazer questões sobre religião ou medicina; não criticar programas acadêmicos; não criticar os estudantes ou professores de escolas vizinhas; dar as razões positivas para a nossa escolha de homeschooling; mostrar que as crianças participam de atividades externas; convencer o inspetor de sua boa socialização; deixar fora de visão livros, imagens e publicações consideradas "politicamente, religiosamente ou cientificamente incorretas”.

Refletimos sobre o que vestir, e arrumamos a casa. Poderíamos até ter preparado e revisto as lições para o noticiário, mas não o fizemos: todas as nossas crianças tiveram tosse convulsa, duas delas tinham acabado de ser hospitalizadas, e nós tínhamos revezado em suas cabeceiras por um mês. No entanto, no dia da filmagem, nós fingimos que era um dia de aula comum. Em suma, nós mesmos tínhamos feito um pouco de encenação.

A equipe de filmagem

Por motivos técnicos, a equipe de filmagem propôs alguns limites, algumas modificações da realidade: colocar as crianças no mesmo cômodo para poupar o homem da câmera e o homem do som de terem que se movimentar (uma das crianças foi filmada ajoelhada em um sofá enquanto normalmente ela estaria sentada em uma mesa em outra sala); reunir os filhos para outras atividades para fazer a cena animada (coleta de ovos no galinheiro, por exemplo); modificar a nossa programação diária para facilitar o número máximo de gravações durante as poucas horas que os jornalistas estavam presentes. O telespectador também iria ignorar que várias cenas aparentemente espontâneas haviam sido repetidas por razões acidentais ou até mesmo triviais: um objeto incômodo no campo de visão, um acesso de tosse, etc.

O Acordo de Sequências

A equipe de produção que filmou nossa família por umas sete horas manteve apenas uma montagem de sete minutos e meio para a transmissão televisiva. O jornalista responsável pela transmissão deu prioridade às sequências inusitadas e àquelas mostrando as crianças se movimentando. Em última análise, você vê muito pouco das crianças trabalhando; você vê-las jogando, brincando com o cachorro, indo buscar ovos no galinheiro, jogando futebol, sussurrando durante uma aula de piano. Claro, é pouco interessante mostrar uma criança fazendo um ditado, mas podemos perceber a intenção deliberada do jornalista para minimizar o trabalho escolar das crianças.

A Interpretação

O filme foi exibido pela primeira vez a um grupo de pessoas convidadas a dar as suas opiniões antes de ser transmitido no canal de TV, algumas semanas depois. Os convidados muitas vezes expressaram opiniões peremptórias e fizeram comentários com base nestas poucas imagens como se fossem suficientes para obter uma boa compreensão da situação. Por exemplo: o inspetor da Educação Nacional declarou que eu tinha autorização excepcional para seguir o curso do CNED (do governo) porque os meus filhos nunca tinham sido enviados para a escola. Mas sua percepção estava errada: eu uso um currículo escolar privado, e eu não sei por que o inspetor ficou em silêncio sobre a existência de cursos privados por correspondência para homeschoolers. Por ignorância, talvez?

Outro participante da exibição do filme, uma mãe de família e "top model" aos olhos do público, notou um dos meus filhos sozinho no campo de futebol e inferiu que ele estava solitário e não tinha amigos. No entanto, sua percepção era inexata: ele havia sido designado para um time de futebol diferente naquele dia por causa das filmagens, o treinador de futebol tinha dito às crianças para se espalharem para os seus exercícios; meu filho, doente com tosse convulsa, havia sido aconselhado a não chegar perto dos outros.

Essa reportagem sobre homeschooling serviu a algum propósito? Será que informou os telespectadores? Para nós, foi muito útil: Graças ao prestígio (!) de estar na televisão, ninguém nos incomodou mais. Aqueles que assistiram a transmissão - parentes, pais ou amigos - permaneceram no escuro; eles estavam desapontados por não saber nada sobre o nível acadêmico das crianças, a única coisa que lhes interessava. Recebemos dois telefonemas de estranhos interessados ​​que assistiram ao programa: uma mãe de família, que tinha desejado retirar seus filhos da escola pública por um longo tempo, a fim de protegê-los contra a miséria, a violência, e a “algazarra” diária em sua escola; e um pai de família, que já havia criado um site sobre homeschooling e queria adicionar algumas coisas ao seu site.

Conclusão: as únicas pessoas que realmente se interessaram na sua difusão já tinham, de fato, pensado muito sobre o assunto e já estavam bem informadas.

Para dar outro exemplo: a equipe de filmagem de O Dia do Senhor veio filmar a Missa Dominical na nossa paróquia. Lá, também, embora nós tenhamos observado os processos de longe, pudemos observar algumas coisas.

O Cenário

Para aumentar o público, a Missa antecipada de sábado à noite foi cancelada, bem como a Missa Dominical geralmente bastante frequentada (há alguns anos, vimos a mesma coisa ao passar pela Rue du Bac e capela dos Lazaristas. Um cartaz anunciava que todas as Missas do bairro foram canceladas por causa da presença de uma equipe de filmagem na Rue du Bac no domingo seguinte e que a Missa Dominical só seria realizada na Capela das Aparições). Um padre desconhecido, trazido pela equipe do filme, veio naquele mesmo dia para pregar. Os fiéis se reuniram para a Missa de domingo por causa das Missas canceladas ou por simples curiosidade. Muitas comunhões foram recebidas naquele dia (segundo o relato no boletim local), até mesmo por pessoas que não praticam a Fé regularmente e que "sentiram-se chamadas" para se aproximar da mesa de Comunhão. Aparentemente não havia nenhuma advertência do púlpito ou aviso por prudência.

Várias reuniões paroquiais foram realizadas com semanas de antecedência, a fim de se preparar para a transmissão. A igreja foi limpa, o mobiliário e ornamentos foram renovados para a ocasião. Em outras palavras, não era uma questão de uma filmagem de improviso, mas de uma celebração cuidadosamente preparada e praticada - que talvez seja normal para as filmagens, mas que não reflete a prática cotidiana. Sob o pretexto de uma reportagem, é cinema puro.

A escolha dos protagonistas

Observou-se que a escolha de nossa paróquia para filmar O Dia do Senhor não era inocente, foi possível perceber a intenção de dar certa feição para a Igreja na França. Eles escolheram um jovem padre, simpático, agradável, embora a idade média dos párocos seja bastante elevada. Eles escolheram um padre que nunca usa o Cânone Romano, nem veste batina ou traje clerical ou colarinho romano. Eles escolheram uma paróquia cujos organizadores não usam o canto gregoriano, mas aceitam os kyriales mais lunáticos e permitem apenas os "cânticos" mais audaciosamente modernos.

A partir destes dois exemplos, podemos definir alguns elementos do "efeito modelo" na mentira indireta.

Omissão

Em uma reportagem, é impossível usar todos os metros de filme: seria muito longo e chato. Eles cortam o que preferem não mostrar por várias razões, que nem sempre são inocentes. Por exemplo, em uma transmissão do Knowledge of the World sobre a Índia, não vimos nenhuma sujeira, nem miséria e nem violência. Nenhum Cristão foi filmado. Apresentaram-nos um país maravilhoso em que os habitantes viviam em paz e beleza, se alegravam, e rezavam ou trabalhavam um pouco.

Em um filme fictício, as cenas incômodas podem ser suprimidas por razões perfeitamente honrosas: no filme Quo Vadis, a carnificina no Coliseu não é mostrada, apenas sugerida. Até os anos sessenta, cenas eróticas eram suprimidas.

Nos filmes, o que é notável é que a vida do herói é singularmente simplificada. Como histórias em quadrinhos, a ação determina que as vidas dos personagens sejam simplificadas. Os heróis têm uma vida familiar reduzida ou nenhuma vida familiar: Tintin, Asterix, Lucky Luke, Rusty (o herói de Rin Tin Tin), e Zorro, cujo pai desempenhou apenas um papel decorativo. A mãe dos jovens heróis de Golfinho Flipper está morta e o pai, muito ocupado com seu trabalho, dá a seus filhos uma grande dose de liberdade: é provável que a presença de uma mãe fosse algo problemático no cenário.

Os heróis nunca experimentam as preocupações diárias dos simples mortais: salas de espera, formulários administrativos para preencher, problemas com o carro, um pneu furado para consertar, papéis espalhados, o recém-nascido chorando à noite, as visitas ao ortodontista, dor ciática, dor de dente. Se este tipo de cena existe, é para alívio cômico ou então é o ponto de partida da ação.

Trabalhos "fáceis e chatos" não são de grande interesse em um filme de ação, mas por força de ignorá-lo e de viver em um mundo povoado por heróis sempre prontos para entrar em ação, você acaba tendo uma falsa representação da vida real.

A literatura também pode levar a esse tipo de confusão, mas nesse domínio o espírito crítico fica mais alerta. Assim Langlo, um jovem agente secreto, órfão e solteiro, vive aventuras incríveis com a idade de dezoito anos, mas uma única frase pode sugerir outras atividades menos gloriosas e ligá-lo a uma realidade mais maçante, rotineira.

Distorção

Quer se trate de filmes, documentários ou noticiários, eles mostram o que é espetacular ou sensacional: guerra, violência, assuntos sórdidos, corrupção dos costumes. Eles também possuem o que pode servir às causas políticas ou ideológicas favorecidas pelos diretores da estação ou por aqueles que lhes pagam. Eles vão mostrar imagens de pessoas que protestam pelo direito à habitação, mas eles vão deixar de fora um protesto muito mais considerável de agricultores.

Em documentários e outras "janelas para a realidade", certas personagens são mostradas em detrimento de outras: sacerdotes provocativos ou bispos, em vez de outros; erros de policiais ou militares, ao invés de sucessos, devido ao trabalho árduo ou investigações laboriosas; sindicatos politicamente favorecidos e ONGs, em vez de outros. Para os franceses, o especialista em ecologia e agricultura é José Bové, mesmo que ele esteja longe de ser universalmente aprovado pelos agricultores e até mesmo em seu próprio movimento. Em questões de ciência e fé, o porta-voz principal na televisão é Hubert Reeves. Torna-se muito difícil explicar que o modelo imposto pela mídia não é o nosso, nem o melhor, nem o mais sério.

Exagero

Seja qual for o filme ou programa de televisão, vemos sempre coisas extraordinárias (mesmo que pareça que nós mudamos da era da televisão espetacular para a da TV realidade). Claro que existem os efeitos especiais, acrobacias e decoração. Mas sutilmente, mesmo sem recorrer a qualquer tipo de artifício, eles arranjam a realidade de modo que é sempre mais bonita, mais visível, mais sensacional.

Em uma reportagem, Homeschooling ou O Dia do Senhor, os indivíduos estão desempenhando um papel diante da câmera. As coisas estão dispostas de modo que tudo vai correr bem naquele dia: as crianças trabalham duro, elas estão prontas a tempo, elas não discutem entre si, a casa é agradável e atraente. Ninguém é de pavio curto, não se está cansado. O telefone está desligado. Em suma, tudo acontece para o melhor. As crianças são calmas, o bebê não chora, a refeição está pronta na hora, sem pressa... Na realidade, as coisas fluem de maneira diferente, mas não é a realidade que está sendo mostrada, é uma imagem retocada da realidade.

Na reportagem sobre o Dia do Senhor, não poderia haver quaisquer notas falsas, os erros nas leituras - tudo tinha sido tão minuciosamente preparado! Além disso, a equipe de filmagem havia chegado à paróquia no dia anterior para instalar seus equipamentos e testar tudo. Mas, na realidade as músicas são mal cantadas, os leitores erram, e o público é escasso.

Nos filmes, os heróis são extraordinários: eles dão e recebem golpes sem se machucar, as crianças são lindas, "super inteligentes", engenhosas, espertas. No filme Esqueceram de Mim, uma criança realizando todos os tipos de inacreditáveis ​​proezas técnicas e intelectuais é idolatrada. Não é ficção científica, não há realmente quaisquer efeitos especiais, mas está muito longe da realidade e das reais capacidades de uma criança dessa idade.

Os mesmos excessos podem ser encontrados em gibis: os Gaulois lutam e recebem golpes na cabeça, sem sofrer qualquer lesão cerebral, o Cavaleiro Solitário nunca perde um tiro. Pode-se imaginar que essas coisas existem na literatura infantil, mas as imagens são capazes de transmitir o irracional enquanto em um livro tem que haver racionalidade: não se aceita o improvável tão facilmente.

Os efeitos da televisão sobre a Mente

I. Viver com mentiras

Na maioria das vezes, as mentiras são aceitas: o poder das imagens, o prestígio da mídia, e a autoridade de rostos familiares na tela, habilmente dispostos, dão mais poder às mentiras do que a própria realidade ou uma autoridade local tem. Por exemplo, um pároco pregou sobre a existência do diabo após uma transmissão amplamente vista na qual um teólogo explicou que o diabo não existe. Algumas pessoas lhe agradeceram [ao padre] por reafirmar a verdade, mas, no geral, seus paroquianos o denunciaram ao seu superior e sobrecarregaram-no com censuras.

Achamos que é muito difícil lutar contra a desinformação sobre o Sudário de Turim, sobre o Papa Pio XII, e outros temas caros ao coração dos Católicos, mas isso é especialmente verdadeiro quando se trata de pessoas que recebem a maioria de suas informações a partir dos meios de comunicação. Entre um bom livro sobre Pio XII e um relatório depreciativo da estação de TV local, é o programa de TV que gruda na mente das pessoas.

"Viver não por mentiras" era o lema de Solzhenitsyn. Para evitar respirar o clima de mentiras, é melhor viver longe da mídia, caso contrário é quase uma certeza deixar-se seduzir. Em seu livro The Hidden Persuaders, o sociólogo americano Vance Packard explica que, incontestavelmente, é a televisão que desempenha o papel preponderante na manipulação das mentes.

Novas técnicas de persuasão aparecem, algumas são baseadas em pesquisa psico-fisiológica. Como podemos ter certeza de escapar da influência dessas técnicas ocultas de persuasão? Nós temos uma propensão a acreditar no que queremos, e todos nós podemos nos deixar ser arrastados para uma mentira reconfortante e sedutora. A televisão não é o único meio em questão. O perigo também existe em outros lugares, mas a televisão é o meio mais ativo de persuasão.

II. A confusão entre real e irreal

De tempos em tempos, os jornais referem exemplos dramáticos de telespectadores que desejaram imitar os seus heróis favoritos. Um adolescente matou horrivelmente sua namorada depois de assistir O Massacre da Serra Elétrica. Crianças se deitam na estrada, imaginando que os carros vão passar por elas sem feri-las. Outros pulam de janelas como o Super-Homem ou Batman. Depois de assistir Imensidão Azul, adolescentes se afogaram em suas banheiras depois de tentar experimentar prender a respiração como os mergulhadores do filme.

Um educador envolvido com crianças assassinas explicou que sua principal tarefa era ensiná-las a viver no mundo real, estabelecer a relação de causa e efeito entre ações e suas consequências. As crianças já não vivem no mundo real: elas acham que é bom matar, bater, e se livrar de pessoas como nos filmes, fazer desaparecer as pessoas é a mesma coisa que desligar a TV (cf. Marie Winn, The Plug-in Drug).

Certamente, esses casos dramáticos envolvem crianças vulneráveis, neuróticas, mas a confusão entre o real e o irreal pode afetar pessoas normais, equilibradas - menos espetacularmente, talvez -, mas talvez não de forma menos dramática.

Para avaliar a confusão entre o possível real e irreal de ver as fontes audiovisuais, o Massachusetts Institute of Technology mostrou aos visitantes clipes de filme e pediu-lhes para indicar o que eles pensaram que estavam vendo, cenas dramatizadas ou eventos reais. Eles mostraram cenas de homens realmente morrendo na guerra ou acidentes, e outras cenas ficcionais de atores representando pessoas morrendo. Os visitantes entenderam sistematicamente tudo errado: as mortes reais, pouco espetaculares, pareciam ficção para eles, e as mortes fictícias, tão bem encenadas, pareciam reais.

Os óculos coloridos da TV

Assim, podemos concluir que os telespectadores não necessariamente distinguem entre o mundo real e a ficção na tela. Mas será que a dependência desta, esta intrusão da tela na vida diária, também não perturba a sua percepção da realidade? É uma teoria difícil de verificar: não se presta a experiências de laboratório. Pesquisadores às vezes tentam fazer estudos sobre populações diversas; uma coisa que temos observado é que o que é necessário é reeducar as pessoas afetadas na realidade envolvente. Os psicólogos da criança lidam com crianças que têm problemas para se conectar com o mundo real e da aprendizagem; elas não sabem como agir sobre as coisas, como usar seus cinco sentidos, lidar com a linguagem, ser atenciosas com os outros. Elas não sabem muitas das palavras comuns da vida diária: cortar, colar, equilibrar, deslizar...
Não é fácil avaliar os efeitos do audiovisual na nossa percepção da realidade, mas na ausência de uma avaliação sistemática, pode-se muitas vezes fazer suposições ou observações. Quando um espectador de televisão pendura um pôster de seu herói favorito em seu quarto, o que significa isso? Isso significa que ele confunde o ator com o herói de uma história real ou fictícia.

Na década de 1990, a mania do Tamagochi foi um furor entre as famílias "plugadas". Os Tamagochis são animais virtuais configurados em uma tela de cristal líquido, pequena e portátil. O proprietário do aparelho tem de pressionar os botões várias vezes ao dia, quando convocado por um sinal para "alimentar" e "andar" o animal, virtualmente, é claro. Em caso de esquecimento ou negligência, o dispositivo se autodestrói. Esta moda parece ter diminuído por agora. A paixão com os Tamagochis revelou não só um esnobismo absurdo, mas também uma perda notável do senso de realidade, que é provavelmente causada pela frequentação assídua dos mundos do audiovisual e do virtual.

Alguns filmes causam pesadelos e ansiedade aguda (O Planeta dos Macacos, por exemplo), mesmo que a história seja absurda e inacreditável. Por que então nós os vemos? "Gosto dos efeitos especiais" ou "Eu gosto de filmes que me fazem fantasiar", admitem alguns espectadores, mostrando a sua compreensão limitada da realidade. Essas fantasias são sempre inocentes ou inofensivas? Será que, em vez disso, elas não constituem uma recusa da realidade? Será que elas não poderiam ser perigosas para nós e para nosso próximo?

Expectativas distorcidas

Nós todos conhecemos pais e mães que parecem projetar em seus filhos um sonho de conquista, glória, sucesso social ou riqueza. Tal ambição sempre existiu, é claro (ler um livro pode inspirar os mesmos sonhos de sucesso), mas hoje o sonho é sobre coisas não Cristãs: glória, vaidade, riquezas e orgulho. Isso está longe de ser o legítimo desejo de colocar os talentos a serviço do bem. O que é particularmente surpreendente é que o sonho é impossível, mas os pais ou a própria pessoa não parecem perceber isso.

Assim, em nossa região, um número de meninos, incentivados por seus pais, queria um programa especial de estudos de esportes para que eles pudessem se tornar jogadores profissionais de futebol (desde que uma equipe local transferiu-se para uma liga profissional). O sonho rapidamente se desintegrou porque os postulantes não tinham as aptidões necessárias. É bastante sério que os pais fossem incapazes de avaliar verdadeiramente os talentos ou a óbvia falta de talento de seus filhos.

Outra família tem sacrificado dinheiro e honra nos últimos dez anos e tem perigosamente hipotecado o futuro do seu filho na esperança de que ele poderia se tornar um ator famoso, mesmo que esse filho não tenha o talento, o físico, ou as conexões que permitem não apenas atingir a glória, mas mesmo uma vida modesta no campo. Quer se tratem de esportes, de música, cinema, ou escolas de esporte profissional, essas famílias que "fantasiam" (3) tomam a sua inspiração da televisão e parecem incapazes de avaliar a realidade, moralidade, utilidade e possibilidade de seu projeto. Ainda mais surpreendente: essas famílias não hesitam em cometer atos irreparáveis, arruinar ou desonrar-se em busca de uma ilusão.

A influência da televisão parece determinante em todos esses casos que vemos acontecer em nossa vizinhança. Os livros, claro, também podem levar a viver em um mundo imaginário. Dom Quixote é a história de um homem que tinha lido muitos livros sobre cavalaria, mas Dom Quixote estava mentalmente doente. Há também o efeito Werther (4): A epidemia de suicídios que eclodiu na Alemanha após a publicação de Werther foi o resultado de um trabalho literário, o audiovisual não tinha nada a ver com isso. Talvez fosse uma questão de pessoas muito frágeis. De acordo com Goethe (cuja indiferença e crueldade devem ser notadas de passagem): "Certamente você não espera que eu esteja preocupado com meia dúzia de tolos e desprezíveis que eu expurguei da terra". O que é novo sobre a televisão é que todos são afetados por ela, não só os fracos de espírito, bobos e "desprezíveis". Felizmente, a maioria das circunstâncias providenciais de tempo obrigam os pais a renunciar ao seu sonho ou transformá-lo.

Voo da Vida

Considere ainda outro efeito da realidade audiovisual e virtual, igualmente dramática para os espectadores ou o seu ambiente: americanos "sem vida" e os japoneses "hikikomori" (aqueles que ficam fechados no seu quarto) tornaram-se um fenômeno social: estes são adolescentes ou jovens adultos que abandonam o mundo real para viver em uma realidade virtual, eles dispõem de televisores, consoles de jogos e computadores em seu quarto, se comunicam com o exterior pela Internet, e não trabalham. Eles são, talvez, mais ligados ao computador que à televisão. Sem dúvida, outros fatores contribuem para o seu comportamento viciante: rivalidade social, pressão dos pais para o sucesso acadêmico, insucesso escolar, etc. Pode-se pensar, no entanto, que a televisão abriu o caminho para esses jovens, deficientes na vida, a fugir do real. Como é o caso da violência, a televisão e os computadores podem ser simultaneamente uma causa e efeito da patologia.

Nos Estados Unidos, estes adolescentes e jovens adultos recebem aulas especiais para ensiná-los a se comportar normalmente na vida real com pessoas reais, ensinando-os a olhar as pessoas nos olhos, falar com elas, e se interessar por elas. O mesmo fenômeno parece estar acontecendo na França, afetando tanto a civilidade e as boas maneiras no sentido estrito, mas também no sentido mais amplo.

Famílias podem escapar de pelo menos alguns dos efeitos negativos da televisão, se os adultos se derem ao trabalho de conhecer e criticar o que foi visto. Mas, de acordo com as crianças entrevistadas, isso raramente acontece. A televisão não é uma ocasião para a comunicação entre pais e filhos, nem entre adultos. De fato, pudemos observar que a nossa própria aparição na televisão ocasionou muito poucos reflexos ou conversas com nossos amigos e conhecidos. Foi muitas vezes limitado a "vimos você na televisão". O único resultado verdadeiramente positivo de nossa aparição na transmissão de TV sobre homeschooling, que deveria ser educativa, foi o de ser conferida a nós uma espécie de respeitabilidade no nosso círculo.

Traduzido de La Télévision, ou le péril de l’esprit (copyright Clovis, 2009)

Notas da tradutora:
(1)   "Docufiction" : não encontrei tradução apropriada para este termo em língua portuguesa. (*)
(2)   Homeschooling = educação no lar.
(3)   Etimologicamente, a palavra significa fantasiar, imaginar.
(4)   Um romance escrito por Goethe.

Fontes : http://borboletasaoluar.blogspot.com.br/2012/07/televisao-alma-em-risco-parte-iii.html

http://borboletasaoluar.blogspot.com.br/2012/07/televisao-alma-em-risco-parte-iv.html

(*) Docuficção (termo que se confunde com docudrama) é um neologismo que designa uma obra cinematográfica híbrida cujo género se situa entre o documentário e a ficção.
É um género cinematográfico que procura captar a realidade “tal como ela é” (como cinema direto ou como cinema-verdade) e que ao mesmo tempo introduz na narrativa elementos irreais ou ficcionais com o intuito de reforçar a representação do real com recurso a determinada forma de expressão artística.

Mais precisamente, é um documentário contaminado por elementos ficcionais1 cuja adição tem lugar no momento preciso em que os acontecimentos decorrem, em tempo real, e em que alguém, a personagem, desempenha o seu próprio papel na vida real. É um gênero em expansão, adotado por um número crescente de cineastas. O termo docuficção surgiu no início do século XXI. É vulgarmente usado em várias línguas e aceite para classificação na maior parte dos festivais internacionais de cinema.

Fonte : http://pt.wikipedia.org/wiki/Docufic%C3%A7%C3%A3o

Veja partes 1 e 3  :
http://desatracado.blogspot.com.br/2014/03/a-tv-e-deformacao-do-povo-13.html

http://desatracado.blogspot.com.br/2014/03/a-tv-e-deformacao-do-povo-33.html

Abraços

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