A
Igreja e as mulheres na Idade Média
*Régine
Pernoud
Recordaremos
aqui que certas mulheres (…) de todas as camadas sociais, como o
prova a pastora de Nanterre, desfrutaram na Igreja, e devido à sua
função na Igreja, dum extraordinário poder na Idade Média.
Algumas abadessas eram autênticos senhores feudais, cujo poder era
respeitado de modo igual ao dos outros senhores; algumas usavam
báculo, como o bispo; administravam muitas vezes vastos territórios
com aldeias, paróquias…
Um
exemplo entre milhares: pelos meados do século XII, os cartulários
permitem-nos seguir a formação do mosteiro de Paráclito, cuja
superiora é Heloísa; basta percorrê-los para constatar que a vida
duma abadessa na época comporta todo um aspecto administrativo: as
doações acumulam-se, permitindo aqui receber o dízimo sobre uma
vinha, ali ter direito a foros sobre fenos ou trigos, aqui usufruir
duma granja e ali dum direito de pastagem na floresta… A sua
atividade é também a dum explorador, ou mesmo dum senhor. É de
dizer, pois, que, pelas suas funções religiosas, certas mulheres
exercem, mesmo na vida laica, um poder que muitos homens poderiam
invejar-lhes hoje.
Por
outro lado, constata-se que as religiosas desse tempo - sobre as
quais, digamo-lo de passagem; nos faltam absolutamente estudos sérios
- são, na sua maior parte, mulheres extremamente instruídas, que
poderiam ter rivalizado em saber com os monges mais letrados do
tempo. A própria Heloísa conhece e ensina às suas monjas o grego e
o hebreu. É duma abadia de mulheres, a de Gandersheim, que provém
um manuscrito do século X que contém seis comédias em prosa
rimada, imitadas de Terêncio; são atribuídas à famosa abadessa
Hrotsvitha, cuja influência sobre o desenvolvimento literário dos
países germânicos se conhece. Estas comédias, provavelmente
representadas pelas religiosas, são, do ponto de vista da história
dramática, consideradas como a prova duma tradição escolar que
terá contribuído para o desenvolvimento do teatro na Idade Média.
Acrescentemos de passagem que muitos mosteiros, de homens ou de
mulheres, ministravam localmente a instrução às crianças da
região.
É
surpreendente também constatar que a enciclopédia mais conhecida do
século XII emana duma religiosa, a abadessa Herrade de Landsberg. É
o famoso Hortus Deliciarum («Jardim de Delícias»), no qual os
eruditos vão procurar as informações mais seguras em relação às
técnicas no seu tempo. Podia dizer-se o mesmo das obras da célebre
Hildegarda de Bingen. Finalmente, uma outra religiosa, Gertrude de
Heifta, no século XIII, conta-nos como se sentiu feliz por passar do
estado de «gramática» ao de «teóloga», isto é, que, depois de
ter percorrido o ciclo dos estudos preparatórios, ela aborda o ciclo
superior, como se fazia na universidade. O que prova que ainda no
século XIII os conventos de mulheres são o que sempre tinham sido
desde São Jerônimo, que instituiu o primeiro deles, a comunidade de
Bethléem: centros de oração, mas também de ciência religiosa, de
exegese, de erudição; estuda-se aí a Sagrada Escritura,
considerada como a base de todo o conhecimento, e também todos os
elementos do saber religioso e profano. As religiosas são mulheres
instruídas; aliás, entrar no convento é uma via normal para
aquelas que querem desenvolver os seus conhecimentos para além do
nível corrente. O que pareceu extraordinário em Heloísa, na sua
juventude, foi o fato de, não sendo religiosa e não desejando
manifestamente entrar no convento, ela continuar, no entanto, estudos
demasiado áridos, em vez de se contentar com a vida mais frívola,
mais despreocupada, duma moça que deseja «permanecer no século».
A carta que Pierre, o Venerável, lhe enviou di-lo expressamente.
Mas
há mais surpreendente. Se se quiser fazer uma idéia exata do lugar
ocupado pela mulher na Igreja, nos tempos feudais, é preciso
perguntar a si próprio o que se diria no nosso século XX de
conventos de homens colocados sob o magistério duma mulher. Um
projeto desse gênero teria no nosso tempo a menor possibilidade de
resultar? Foi, no entanto, o que se realizou com pleno sucesso, e sem
ter provocado o menor escândalo na Igreja, com Robert d’Arbrissel
em Fontevrault, nos primeiros anos do século XII. Tendo resolvido
fixar a multidão inverossímil de homens e mulheres que chamava
atrás de si -porque foi um dos maiores conversores de todos os
tempos-, Robert d’Arbrissel decidiu fundar dois conventos, um de
homens outro de mulheres entre eles erguia-se a igreja que era o
único lugar onde monges e monjas podiam encontrar-se. Ora esse
mosteiro duplo foi colocado sob a autoridade, não dum abade, mas
duma abadessa. Esta, pela vontade do fundador, devia ser viúva,
tendo, pois, a experiência do casamento. Acrescentemos, para sermos
completos, que a primeira abadessa, Pétronille de Chemillé, que
presidiu aos destinos desta ordem de Fontevrault tinha 22 anos. Não vemos que hoje semelhante audácia, mais uma vez, tivesse
possibilidades de ser encarada.
Se
examinarmos os fatos, impõe-se esta conclusão: durante todo o
período feudal, o lugar da mulher na Igreja foi certamente diferente
do homem (e em que medida não seria uma prova de sabedoria o ter em
conta que homem e mulher são duas criaturas iguais, mas
diferentes?), mas foi um lugar eminente, que, aliás, simboliza
perfeitamente o culto, eminente também, prestado à Virgem entre
todos os santos. E pouco nos surpreende que a época termine com um
rosto de mulher: o de Joana d’Arc, a qual, diga-se de passagem,
nunca teria podido nos séculos seguintes obter a audiência e
suscitar a confiança que no fim de contas obteve.
(PERNOUD,
Régine. O Mito da Idade Média. Publicações Europa-América, S/D,
pp.95-99)
*Régine
Pernoud: historiadora e medievalista francesa (1909-1998). Doutora em
Letras e diplomada pela École des Chartes e pela École du Louvre,
foi diretora do Museu de Reims, do Museu de História da França, dos
Arquivos Nacionais e do Centro Jeanne d´Arc d´Orléans (que fundou
em 1974). Escreveu numerosas obras sobre a Idade Média, entre as
quais destacamos “Idade Média: o que não nos ensinaram”, “Luz
sobre a Idade Média” e “A mulher no tempo das catedrais”.
Texto
adaptado por mim para o português do Brasil. Os grifos são meus.
Fonte : http://borboletasaoluar.blogspot.com.br/2008/06/igreja-e-as-mulheres-na-idade-mdia.html
Leia também as partes 1 e 3 :
http://desatracado.blogspot.com.br/2013/12/a-mulher-na-idade-media-14.html
http://desatracado.blogspot.com.br/2013/12/a-mulher-na-idade-media-44.html
Abraços
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