Filmando o olho da mente: a falácia do entretenimento passivo
Por
Andrew Childs
Traduzido
por Andrea Patrícia
Através
da nossa percepção sensorial, nós interagimos com estímulos
intelectuais e emocionais (1). Santo Tomás tratando sobre a virtude
intelectual, descreve a ação da vontade em dirigir o uso de tais
estímulos, e, mais importante, lembra-nos que a bondade ou a maldade
desses processos mentais depende das nossas intenções e em
escolher livremente a natureza das nossas reações (2). Nossas boas
respostas resultam de nossa capacidade em organizar estímulos
baseados no conhecimento e em nossa capacidade de identificar
princípios morais pertinentes e regular nossas reações de acordo
com eles. A recepção passiva de estímulos artísticos torna a
presente regra improvável, se não impossível. O espectador ou
ouvinte desengajado deixa-se abrir à manipulação: a recepção
passiva de estímulos embota a capacidade receptiva, e substitui a
imaginação com imagens embaladas e respostas emocionais – no fim
das contas intelectuais - pré-determinadas. Propriamente falando,
não existe nenhum entretenimento verdadeiramente casual, somente
uma falha por parte do destinatário para ocupar a mente durante o
processo de recepção, e uma falha em reconhecer que o
entretenimento não possui substância para um impacto intelectual
apreciável, no entanto deixa uma impressão emocional .
Filmando o Olho da Mente, ou, Por Que o Livro é Melhor
Apesar
de não serem estúpidas, as versões cinematográficas de obras
literárias fornecem um exemplo útil. Os melhores exemplos destes
filmes (o de Kenneth Branagh, Henrique V, produzido pela BBC em
1989; a produção da PBS de Orgulho e Preconceito em 1995, etc.)
ainda estão aquém do alimento intelectual do original na medida em
que eles substituem a vital capacidade intelectual da imaginação
por imagens num cenário. Não importa o quão magistral seja a
fotografia, essas representações empacotadas vão estimular
principalmente as emoções, e não a imaginação como alguns
defendem: a prova disso reside no fato de que muitos desenvolveram
uma recordação cinematográfica dos acontecimentos históricos,
personalidades e conceitos relacionados mais especificamente a
filmes do que um sentido objetivo do contexto histórico sustentado
por princípios (3). Quanto a precisão supostamente superior dos
filmes "historicamente informados", devemos lembrar que
alguns relatos históricos objetivos jamais existiram realmente,
mais importante, nós sabemos pela nossa Fé que o entendimento
transcende a experiência.
A
imaginação baseia-se na realidade e, embora nunca tenhamos
experimentado diretamente as imagens e sons de uma terra estrangeira
ou época distante, através de nossa compreensão de estímulos
relacionados podemos reproduzir imagens realistas e mentais das
cenas que lemos. Isso se relaciona com nossa faculdade de abstração,
onde a mente reconhece fundamentos universais, e faz conexões com
base em nossas experiências particulares. A criança entende, por
exemplo, que o beagle é um cão de família. Através da abstração,
pode-se deduzir que o grande dinamarquês do vizinho é também um
cão, assim como o poodle da sua avó. A criança reconhece as
essências universais de "cão" em todos os animais um
animal de - quatro - patas que late e arfa - mesmo que as
características particulares variem muito. Mais importante, a
abstração de uma criança como uma faculdade pode se desenvolver,
e deve, de fato, se é para ter alguma esperança de apreender
conceitos de natureza abstrata ou teórica (muitas vezes durante sua
vida a criança precisará desta habilidade, tanto na esfera das
idéias quanto das interações, muitos lobos famintos fariam crer
que são apenas cães amigáveis...). Este desenvolvimento, no
entanto, não acontece simplesmente como uma questão de maturidade
física ou experiência acumulada, mas requer uma aplicação
coerente. Assim como uma criança aprende conceitos adultos -
responsabilidade, justiça, partilha - através do jogo, os adultos
podem aprimorar os poderes de abstração através da recreação –
lendo, ouvindo, criando -, mas apenas através da recreação que
envolve ativamente a imaginação. Entretenimentos visuais passivos
embotam este poder de abstração, embora possa deslumbrar os olhos
e dominar as emoções (com a ajuda da trilha sonora bem escolhida,
projetada para adicionar profundidade emocional, convencendo os
espectadores que participam de uma experiência muito mais profunda
do que o que eles realmente participam) (4).
Música
de fundo
A
música manipula em um nível emocional. No seu melhor, a música
inspira uma confluência de sensibilidade cognitiva e emocional que
se aproxima do sobrenatural. De todas as artes, a música "que
devido à natureza emocional de seu modo de comunicação fornece
uma ligação entre os reinos físico e o metafísico - sofreu o
rebaixamento mais grave e dinâmico nos tempos modernos, tanto em
termos de processo quanto de propósito. O inimigo tem muito a
ganhar com esta manipulação – convencendo as pessoas de que elas
pensam o que na realidade elas apenas sentem - e ainda mais a ganhar
com a nossa incapacidade de reconhecer tal manipulação, melhor
facilitada por empurrar a música cada vez mais para o fundo de
nossa consciência. A sociedade passou a considerar a música como
algo inteiramente eletivo, e completamente inato. Ao contrário do
desenvolvimento de qualquer habilidade real (então a opinião
continua), todo homem pode apreciar a música apenas se ele escolher
isso, e ao escolher não nutrir um apreço pela música, ele
simplesmente decide usar todo seu tempo livre em alguma outra busca
tecnicamente desnecessária (ou talvez mais viril). A perda da
capacidade de apreciar uma forma de arte insignificante, secreta,
pouco importa para tal homem, especialmente à luz de sua iluminação
tecnológica superior e relativo progresso geral com relação às
sociedades antigas; além disso, a maioria das pessoas já tem muito
pouco tempo... " 5
Duas
mentalidades particularmente perigosas desenvolvem-se a partir desta
linha de pensamento:
Primeira -
aquela música séria é tanto vocacional, ou pior, recreação
específica de gênero – o reino das buscas femininas. Os homens
podem se identificar com a música vernacular de danças
folclóricas, quadrilhas, ou música popular, já que esses estilos
familiares fazem poucas exigências aos ouvidos masculinos e
proporcionam muitos benefícios: a música vernacular conecta um
homem às suas raízes, confirma-lo em sua masculinidade, e ainda dá
voz para o seu patriotismo. Embora insuficiente, também cumpre
alguma exigência de cultura. Na ocasião, no entanto, os homens
tiveram que se submeter à penitência da arte elevada, todavia com
certos entendimentos: assim como uma mulher "fez seu dever,
arrastando seu marido a um concerto ou ópera, seu marido manteve a
sua masculinidade, protestando por todo o caminho, e adormecendo
durante a execução da música" (6).
Segunda –
o elitismo reverso prova ser muito mais perigoso.
A música country, tanto nova quanto a antiga, caracteriza esta
atitude mais proeminente: se as velhas formas simples adequavam-se
aos meus antepassados, então são adequadas a mim também. A
tentativa de introduzir idéias de fora ou buscas (a força invasora
cultural é sempre estigmatizada como externa ou estrangeira) não
representa uma oportunidade para o enriquecimento, mas sim uma
espécie de guerra, uma traição da educação [recebida]. Família
e comunidade podem exercer pressões tremendas, acusando o novo
[homem] culto de "empinar o nariz", de adotar uma atitude
de superioridade. O reconhecimento da óbvia insegurança e o medo
do desconhecido - bem como a conveniência do familiar - que motiva
essas acusações pouco faz para amenizar o impacto do exílio
cultural. Um apelo à lealdade da família e à nobreza da vida
simples silencia qualquer argumento em nome da cultura. No entanto,
aqui reside uma armadilha perigosa, uma probabilidade de pegar
aqueles cuja apatia intelectual diminuiu seu poder de abstração:
um homem simples, não é um simplório. A diferença não reside
apenas na profundidade de seu caráter, mas na clareza do seu
pensamento. O Diabo se esforça incansavelmente para derrubar a
ordem de Deus em todos os domínios. Em termos de cultura, ele teria
homens e mulheres se comportando como crianças - ou como animais
irracionais. De acordo com ele, a recreação musical nunca deve
ameaçar, desafiar, ou nos impor qualquer contemplação
imaginativa; ela deve sempre permanecer acessível e
confortavelmente reconhecível.
A
atmosfera criada pela música que soa familiar cria uma sensação
de tranqüilidade psicológica; defesas intelectuais relaxam em um
reconhecível ambiente sonoro emocional. Em tal estado, o ouvinte
permanece predisposto a permitir a entrada de quaisquer sentimentos
transportados pelo material musical que se tornou de fato um
companheiro emocional. E ainda, como uma espécie de traição, a
música que em uma ocasião foi cantada para fazer as crianças
dormirem, na outra vai sussurrar em seus ouvidos as mentiras e os
escândalos mais venenosos; e, acompanhada por um amigo da família
melódico ou harmônico, dá ao mesmo tempo a impressão de que
essas novas idéias ostentam a marca de aprovação. Ler letras de
músicas populares de qualquer é chocante, tanto em termos da quase
total falta de graça poética, quanto a mensagem temática:
despojada da música feita para mascarar a mensagem literal, poucos
dos mais endurecidos libertinos iriam conceder a esses sentimentos
acesso aos seus filhos. E ainda estruturalmente, harmonicamente,
melodicamente e ritmicamente, a música
de ocasião próxima se assemelha quase exatamente àquela de
nosso folclore moderno e heróis populares.
A
música, se quiserem, envolve uma imaginação emocional; em vez de
desencadear a recordação e associação de imagens específicas,
pessoas ou eventos, a interação criativa com a música induz a
liberação de todas as imagens e cenários relacionados com um
estado emocional: canções de Natal, o coral da Paixão, a música
tocada em um casamento, a música favorita de um parente falecido.
Na maioria dos casos, o viajante emocional não se importa com o seu
destino, falhando em levar em conta o modo de transporte.
Cultura
ativa: apreciando a beleza gratuita
A
participação ativa ocorre na mente. Nós interagimos com a arte
através da imaginação e da compreensão que a arte inspira.
Cultura ativa, no entanto, não inclui necessariamente participação
real. Embora muitas vezes essa participação possa fornecer um
maravilhoso canal social e intelectual benéfico para a formação
adequada, o talento individual limita a extensão em que o nosso
envolvimento direto pode inspirar a imaginação. Vamos
inevitavelmente arriscar [a participação] em termos de conteúdo
ao assumir apenas os projetos dentro das nossas capacidades, ou, em
termos de qualidade através da realização de obras além de
nossas habilidades. Ao fazer o último, podemos roubar as obras de
sua verdadeira capacidade inspiradora. Uma associação pública
pode fornecer os meios mais eficientes de cultura ativa para a
maioria das pessoas, pois ouvintes, telespectadores e leitores
(talvez o público mais exclusivo, já que o autor fala ao leitor
somente) devem perceber a sua responsabilidade de interagir com a
forma de arte, e devem optar por exporem-se a obras de reconhecida
qualidade, e não simplesmente a tipos de obras que acham familiar
ou confortável... ou simplesmente relaxante. Embora a arte possa
acalmar e confortar, muitos tem em conta as atividades culturais
como puramente recreativas ou escapistas. Embora a Escritura nos
exorte a "ser como as criancinhas" (7) nós muitas vezes
confundimos infantil com imaturo a este respeito. Como mencionado
acima, para a criança, a brincadeira é trabalho, quantos adultos
conservam um senso de imaginação industriosa em sua recreação?
As crianças mostram sua atração inata a conceitos universais na
criação de suas "fantasias": os cenários que elas
desenvolvem e continuamente revisitam podem revelar a falta de
experiência - e armazenamento limitado de elementos - , mas não
uma fuga da realidade. Por outro lado, um homem que se contenta em
ficar permanentemente dentro dos mesmos parâmetros culturais de sua
infância arrisca-se a desenvolver uma capacidade diminuída para
distinguir os universais, e uma visão cada vez mais estreita da
realidade.
Nossa
criação de realidades alternativas para refletir nossas fantasias
representa um subjetivismo perigoso e uma inversão de ordem; ainda,
qual é a nossa capacidade de fazer fantástica a realidade? O
artista - assumindo uma participação ativa beneficiária - emprega
livremente uma beleza maravilhosamente impraticável, se não
gratuita, a fim de estimular e encantar a imaginação. Ao
amanhecer, na cena de abertura de Hamlet, Shakespeare poderia ter
feito com que Horácio descrevesse o nascer do sol em termos muito
mais simples do que estes "Mas veja, o amanhecer vestido com um
manto castanho-avermelhado caminha sobre o orvalho além da alta
colina ao leste" -, mas nossa mente se deleita com o fato de
que ele não o fez. No prelúdio de Das Rheingold, nós
nos sentamos paralisados enquanto Richard Wagner gasta cinco minutos
- e usa cem músicos orquestrais - para explorar o potencial sonoro
caleidoscópio de um único acorde. Quando um homem se apaixona por
uma mulher, sua aparência familiar torna-se uma de suas principais
fontes de simples alegria contínua e estabilidade psicológica. Ao
longo de sua vida como esposa e mãe, ela certamente irá possuir a
beleza física dotada a ela pela natureza, e ainda que ela mantenha
esta beleza através das atividades de sua vida, ela irá provar seu
amor ao aceitar e realizar as funções de seu dever de estado. No
entanto, no dia de seu casamento, a beleza torna-se, com efeito, seu
dever de estado; neste dia, ela vai usar a beleza para mostrar a
extensão de seu amor por seu marido. O retrato de casamento, embora
muitas vezes trazendo pouca semelhança com a aparição diária de
uma mulher, torna-se um artefato que representa o seu uso
intencional de beleza gratuita para simbolizar este amor.
A
interação ativa com estímulos culturais nos prepara para
construir tais dons da imaginação para os outros. Devemos
reconhecer a necessidade de desenvolver as nossas faculdades
mentais, para que possamos apreciar e dirigir a nossa imaginação
para o sobrenatural através de meios intelectuais e emocionais;
através da oração, nós direcionamos essas faculdades através de
meios espirituais também. Longe de um processo eletivo - apenas um
pouco menos eletivo do que a oração - eu diria que a cultura ativa
nos fornece as ferramentas para cumprir o mandamento de amar uns aos
outros nas mais maravilhosas das formas. Prepara-nos para dar e
receber presentes de compreensão emocional e intelectual de tal
forma que todas as pessoas, independentemente de lugar, tempo ou de
status, reconhecem a beleza, muitas vezes gratuita da arte - e da
extrema generosidade de Deus em prover fontes ilimitadas de
inspiração artística - a unidade que Ele deseja ter conosco.
_____________________________
O
autor:
Dr.
Andrew Childs é professor de música na St. Mary's
Academy and College, em St. Marys, Kansas,
onde vive com sua esposa e filha, e dois gatos de circunferência
lendária e de boa natureza. Ele também é Assistente do Diretor de
Educação do Distrito dos EUA da Fraternidade de São Pio X. Ele
ensinou na Universidade de Yale, na Universidade da Califórnia em
Irvine, na Universidade Estadual do Missouri, e na Faculdade de
Connecticut. Um intérprete profissional ativo, cantou em mais de
cem apresentações de cerca de trinta papéis em óperas.
__________________________
Notas:
1 Platão faz as seguintes distinções: a imaginação envolve 1) percepção de objetos e julgamentos baseados em sua aparência - a questão da percepção vs realidade, 2) a capacidade mental de produzir imagens de coisas que não estão presentes, e 3) a representação física de objetos com base em imagens trazidas pela mente - criação artística.
1 Platão faz as seguintes distinções: a imaginação envolve 1) percepção de objetos e julgamentos baseados em sua aparência - a questão da percepção vs realidade, 2) a capacidade mental de produzir imagens de coisas que não estão presentes, e 3) a representação física de objetos com base em imagens trazidas pela mente - criação artística.
2 Santo Tomás de Aquino, Summa Theologica, I-II, QQ.
55-59.
3 Outra prova: ainda que seja uma obra surpreendente e admirável, A
Paixão de Cristo, de Mel Gibson, fornece muitas de suas imagens
para a meditação sobre a Paixão. A este respeito, Gibson tem
prestado um grande serviço, embora a pessoa que medite sobre as
imagens do filme perca uma dimensão contemplativa, por causa da
natureza fixa das imagens do filme, a contemplação torna-se
estereotipada. Embora úteis e necessárias em muitas maneiras,
sabemos que a oração através de fórmulas - neste caso,
contemplação através de fórmulas - não tem a espontaneidade
imaginativa e a edificação potencial da oração mental.
4 Uma nota importante sobre o desempenho do palco. Apesar da
dramaturgia e dos cenários criarem alguns efeitos realistas, atores
e público precisam entender a natureza puramente representativa
deste realismo. O pleno efeito dramático requer contemplação,
conseqüentemente, muitas pessoas acostumadas com a hiper-realidade
do cinema veem as peças de teatro apenas bidimensionais. Elas não
conseguem perceber o seu papel participativo.
5 Com o avanço da sociedade moderna industrializada, a cultura
(individual ou coletiva) tornou-se cada vez mais receptiva ao invés
de ser um processo interativo; para que não insistamos que as
nossas atuais formas de cultura interativas rivalizam com as normas
pré-industriais essenciais, considere que as canções de Franz
Schubert - agora domínio quase exclusivo de artistas profissionais
- eram consideradas canções de salão, ideais para a família
cantar e tocar.
6 Frank Rossiter, Charles Ives and
His America, 27-28. Rossiter
escreve sobre o pós-guerra entre a era dos Estados.
7 Mateus 18 : 3.
Abraços
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